Fonte: Luiz Felipe Pondé
SOU UMA personalidade atormentada e dada a arroubos.
Noites insones me levam a terras distantes onde nossos ancestrais vagam
arrancando a vida e seu sentido das pedras. Com o passar dos anos, cada
vez mais me encanta a luta desses nossos patriarcas perseguidos pelos
elementos naturais, por seus próprios demônios e por deuses de olhos
vermelhos cheios de sangue e dentes afiados.
Construímos
sonhos de autorrealização profissional, afetiva e material. A
expectativa com nossa própria grandeza ocupa grande parte de nossos
devaneios.
O sentimento
da fragilidade do mundo sempre me perseguiu desde a infância. Se os
psicanalistas estiverem certos, e tudo que é primitivo é indelével, esse
sentimento constitui minha substância mais íntima.
Que inveja eu tenho das moscas! Livres, voando pelo mundo, sem saber de si mesmas.
Li nas últimas férias a coletânea de ensaios “The Best American Essays of the Century“, editada por Joyce Carol Oates e Robert Atwan (Houghton Mifflin Company, Boston).
Destaco dois ensaios: “The Crack-Up” (a rachadura), de F. Scott Fitzgerald, de 1936 e “The Old Stone House” (a velha casa de pedra) de Edmund Wilson, de 1933.
Edmund
Wilson foi, segundo Paulo Francis, o último grande crítico literário de
uma tradição na qual o crítico não se escondia atrás de algum teórico,
tipo Blanchot ou Derrida, para repetir o que todo mundo diz e com isso
não correr riscos. Wilson enfrentava o autor cara a cara, dizendo o que
pensava dele, sem se preocupar com o que a “indústria da crítica
acadêmica” diria. A coragem nunca foi um valor na academia, Francis
tinha razão.
Nesse
ensaio, Wilson fala de uma casa de pedra na qual sua família viveu por
muitos anos. Sua família era do tipo de família que aqui chamaríamos de
quatrocentona falida. Mãe fria, pai, homem letrado e melancólico, ele,
Wilson, parecido com seu pai, e também um bêbado.
Estou
convencido de que pessoas sem algum vício terrível permanecem em alguma
forma de infância moral. Apenas quem perdeu qualquer esperança de ser
virtuoso deveria falar sobre moral. Pessoas sem vícios falando sobre
moral é como virgens dando aula de sexo.
Wilson,
entre outros parentes, fala de uma tia, infeliz no casamento, obrigada a
ser uma mulher normal quando na realidade era uma filósofa
schopenhauriana amadora. Segundo ele, ela enfrentou virtuosamente seu
fardo criando um sistema filosófico pessoal pessimista e, quando ficou
viúva, se mudou para Nova York e gastou seus últimos dias indo a
livrarias e vendo teatro. Quando ainda casada, sua tia lia à noite,
sobre o fogão, sozinha, em seu único momento de paz.
F. Scott Fitzgerald, autor de “O Grande Gatsby“,
nesse ensaio descreve a sua maior crise existencial (a rachadura que dá
título ao ensaio), que o acometeu por volta dos 50 anos. Escritor
famoso, Fitzgerald afirma: “Identifiquei-me com meus próprios objetos de
horror e compaixão” e “passei a ter uma atitude trágica em relação à
tragédia e melancólica em relação à melancolia”. Em síntese, foi
inundado por seus próprios objetos literários e se tornou, ele mesmo, um
deles. O efeito foi devastador e libertador.
Na abertura,
ele define o que entende por uma pessoa inteligente: conseguir viver
com duas ideias opostas sobre a vida e não desistir de nenhuma delas.
E
exemplifica: saber que não há esperança para nós e ainda assim viver
buscando provar o contrário. O resultado seria uma vida combativa em
nome da esperança. Uma vida pautada pelo controle de si mesmo e do mundo
a sua volta.
Ao final do
ensaio, ele volta a definir, agora, o que é, após sua rachadura, o
estado natural de um adulto que tem consciência e sensibilidade:
infelicidade qualificada (e não banal).
Uma condição
com a qual convivemos, mas que ao assumi-la, uma espécie de libertação
acontece: em suas palavras, não mais desejar ser um homem bom, não mais
ser simpático com o marido de sua prima, nem responder a cartas de
escritores jovens medíocres que não deveriam aborrecer os outros. Ser
apenas um escritor e não querer agradar a ninguém, nem a si mesmo.
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